domingo, 20 de fevereiro de 2011

Ai de ti, Copacabana.

Um telefonema apenas cordial, a que atendo com naturalidade - mas por que, depois, esse indefinível tremor íntimo, essa remota noção de que representei uma cena sob o efeito do hipnotismo, esse indizível susto? Sou um homem tranqüilo, e minha vida está tranqüila, mas ouço essa voz, esse nome, e pronto! - começo a agir como se eu trabalhasse em um filme a que eu mesmo estivesse assistindo. Represento meu papel de maneira normal e faço o papel de um homem normal; mas há um outro eu invisível que é aqualouco, patinador sobre o arco-íris, menino tonto, Hamlet, palerma, patético. Enquanto eu digo uma coisa sensata esse meu fantasma se entrega a um silencioso desvario, ou recita versos antigos, voa como anjo, soluça. Posso contemplá-lo com frieza, criticá-lo, ter pena dele; evito que ele influa no mais mínimo em minha conduta real; quando ele tem um impulso de falar ao telefone eu me ponho tranqüilamente a descascar laranjas ou fazer ponta em um lápis; e sem minhas mãos, sem meu corpo, ele não pode fazer nada. Resolvo ignorá-lo e chego a esquecê-lo durante semanas; mas quando surge a Presença ele salta ao meu lado, sob uma luz sobrenatural, absurdo e infantil. Não estou apaixonado; meu comércio sentimental com as outras criaturas corre normal, com suas alegrias e tristezas. Não estou apaixonado, mas posso ver a face da paixão. E por um instante fico parado, mudo, como quem ouvisse, no fundo da noite, o sussurro das estrelas e reconhecesse. (A Presença, por Rubem Braga)

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